sábado, janeiro 29, 2005

Dom Cócó nas coronárias da Europa (I) ou A longa, longa viagem

O hangar desta vez havia sido substituido pelo bulício de uma estação no subsolo. Dom Cócó nunca tinha visto nada tão modesto e ao mesmo tempo tão moderno. Aquela paragem ficava num piso subterrâneo ao Parladeiro Europeu, nome carinhoso dado por si por ser onde as pessoas falam muito sobre coisa nenhuma que se entenda. A bilheteira internacional, não fugindo aos tons da arquitectura contemporânea de cores frias e alumínios, tinha uma porta de tecnologia duvidosa. Parecia uma daquelas automáticas que abrem por aproximação mas tinha uma particularidade, quando uma pessoa se aproximava ela não se abria. Os anõezinhos que empurram a porta ou precisavam de uma consulta no oftalmologista ou então faziam parte de um grande conluio para apanharem Dom Cócó num momento de hesitação para a televisão. Sem saber o que fazer, ele esperou. Esperou que alguem se aventurasse a ir de encontro as caras curiosas dos senhores nos guichets que o olhavam entretanto já com alguma suspeita.
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Depois de perceber que a porta funcionava era por contacto, lá entrou com um furacãozinho negro sobre a cabeça e nem sequer se esforçou para falar na língua local mas antes optou pela segurança de um dialecto científico perceptível por qualquer imbecil da nossa era, o Anglês. Foi entrar e sair. De bilhete na mão cumpria-lhe agora ir num pézinho buscar a sua geringonça de colo e voltar no outro para apanhar o combóio-diligência-limpa-neves. O conforto dos vagões era valioso não pelos acabamentos mas pela rarefacção de pessoas. Um passageiro por cada dois assentos e ainda com direito a mesinha de apoio.
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À sua frente e de costas para o destino viajava um senhor já de certa idade. Não sendo propriamente uma idade respeitavel, era uma idade daquelas chatas – a da pré-reforma. Antevendo, por isso, o que poderiam constituir 5 horas de suplício, Dom Cócó submergiu o olhar nos caracteres pequeninos de um romance policial pouco menor que uma Bíblia.
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De vez em quando deitava o periscópio sobre o seu companheiro de viagem só para verificar a sua condição de saúde. Inadvertidamente, lançou o olhar sobre os papeis do concidadão e lembrou-se do motivo da sua viagem. Aparentemente tinham ambos o mesmo destino. O grande concílio de Organizações Não Estatais ou que não se enquadram na estrutura de Estado por não serem tão úteis assim. O senhor ia em representação da Associação Mundial de Espertanto, por certo incluído no subgrupo de Linguas Transversais Comuns Que Nunca Existiram. Aí, Dom Cócó teve a confirmação: Reforma Antecipada, sem sombra de dúvida.
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As paisagens sumptuosas das florestas de coníferas sucumbindo ao peso das neves fizeram Cócó pensar como os grandes esmagam os pequenos, mas isso acontece só por um periodo limitado de tempo porque aparece sempre um maior para derreter o opressor. Nisto, repara que já tinha passado por 2 países e que ninguem lhe verificava identidade, processo de avaliação que aliás odiava. Havia um receio que palpitava na nuca de ser confundido com um vulgar meliante e de se ver enredado numa situação kafkiana.

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