Dentro da carruagem está uma senhora que toca acordeão com uma face engandoramente alegre. Um sorriso estudado que é capaz de por e tirar conforme lhe apetece tamanhas foram as passas que a vida lhe deu. Ela presta um serviço aos passageiros, toca umas tarantelas e vai olhando em volta enquanto as pessoas desviam o contacto directo com o seu olhar preferindo o anonimato do reflexo escuro da janela. Paragem Parc / Park, ninguém entra, ninguém sai e ela continua a tocar como se agora tivesse começado. Acho mesmo que por momentos ela prórpia meteu o piloto automático e pensa no que vai comer à noite, na roupa para lavar, nos pensos que tem de comprar, no homem que está a fazer o mesmo na outra linha, nos filhos que ficaram com a avó na Roménia... e vai tocando esquecidamente. O sorriso ficou-lhe preso todo este tempo.
Percorre o vagão com o copo de cartão com as moedas pequenas que deixou para ir chocalhando com a suave melodia a uma mão que deixa no ar. Ninguém dá nada, mas perseguem-lhe os olhos pela imagem no vidro. Um vagão cheio de predadores da miséria alheia. Alimentar-se disso deixa-nos um conforto de como as coisas podiam ter sido piores, de como a vida podia ter sido mais calhorda connosco.
Centraal station / Gare central
Ninguém lhe dá nada, nem um olhar, e ela retribui com o mesmo sorriso preso porque ela própria não esperava mais do que teve. Sai vitoriosa para o próximo vagão porque a vida não a surpreendeu. A previsibilidade do pior ajuda a suportá-lo.