Está frio. Entre as pedras escuras do chão cristalizam poças de água, poças que se tornam viscosas e baças como quartzo leitoso. Dou os passos pequenos rua afora, pequenos do medo que me falhe o atrito.
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Enterro o queixo mais dentro do cachecol que me volteia o pescoço, a barba não ajuda e roça-o para baixo. Mordo-o para cima com os lábios porque Deus me livre de tirar a mão do bolso das calças. As unhas ficatiam roxas e sintir-me-ia um morto-vivo em estado avançado de cianose.
Oficialmente é Inverno. Mas não é um Inverno como o nosso. É um frio generalizado que só conhecíamos das histórias para crianças, daquelas que metiam sempre uma rainha do gelo, unicórnios e corujas brancas. Aqui não há nada disso, só persiste mesmo a ideia glaciar de viver numa caverna de estalactites cristalinas.
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Olho pela janela do escritório e vejo a neve a dançar. Até hoje só a tinha visto cair pesada e toscamente no chão. Também tinha visto polvilhar, uma neve fininha e irritante que recobre tudo de açucar em pó e que derretendo deixa uma fina camada de gelo, um culinário glacé.
Do aconchego da chávena de café que aperto com as duas mãos, observo o bailado de flocos de neve, aleatoriamente para baixo, para cima e para os lados, como os bandos de estorninhos ao fim de uma tarde de outono no Cais do Sodré. Mas a neve não chilreia, a neve não tem som. Confina-se a um silêncio orgulhoso e sobranceiro que nos custa também interromper.
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A voz sai custosa, sai pastosa, sai a medo. Pergunto as horas e faço os descontos mentais para saber se para o meu povo já terá cantado o galo.
Ai se eu pudesse por uns minutos ver o sol dançar outra vez...